-Isso é mentira! Mentira sua! Você não tem
pretexto algum pra se aproximar dos meus filhos e agora inventa essa patacoada?
-Você acha que isso tudo é uma farsa? Pois eu
tenho como provar o que estou dizendo. Desde que eu soube que os discos da
minha filha tinham sido roubados, eu contratei um detetive particular. E
descobri que os assaltantes não são ninguém menos do que os funcionários da RYC
Transportadora! Familiar esse nome pra você, não é? A sua transportadora!
-Eu não acredito que você fez isso comigo.
-E não é pra acreditar mesmo! Sua mãe, ou
melhor, esta mulher está fazendo de tudo pra acabar com a imagem que eu
construí.
-Se engana, eu não me atreveria a tanto. Que você
fez pelos nossos filhos o que pôde enquanto eu preferi me afastar deles, disso
eu não tenho a menor dúvida. Mas tentar acabar com o sonho da Yanna? Pra quê
isso, Bernardo?
-Sílvia, você... Você não tem como provar uma
vírgula dessa história que está nos contando.
-Aqui tem um dossiê comigo!- entrega-o à
Yanna- Um dossiê com informações que comprovam que quatro dos seus funcionários
foram pagos por você pra roubarem os caminhões. Eles trocaram as placas dos
dois veículos assim que saíram da vista dos motoristas. E colocaram fogo pra
que ninguém pudesse identificar onde eles tinham parado. Mas antes, Bernardo,
você deu a cartada final: fez com que os ladrões entrassem em outra via erma e
descarregaram as onze mil cópias em caminhões próprios da transportadora, pra
que quando encontrassem os veículos da gravadora, pensassem que os CDs também
tinham se perdido no incêndio criminoso. Assim, eles seriam armazenados na sede
da transportadora e ninguém desconfiaria de nada.
-Graças a Deus!- a frase de Miguel deixa
Bernardo ainda mais alterado- Deus é tão maravilhoso que não deixou nada
acontecer com os discos da Yanna. Porque Ele sabe o coração que a serva dele
tem.
-Deixa de dizer baboseira, Miguel!
-Baboseira nenhuma!- Yanna se volta contra o
pai- Eu vou agora mesmo ligar pro Cadu e avisar que os discos estão na
transportadora. Você vai ter coragem de negar isso? É a sua cara, Pai! Desde
que eu falei da gravação do disco, você não suportou a ideia de me ver
realizando meu sonho... Porque sempre exigiu que eu realizasse os seus! Mas
agora chega! Esse CD vai chegar às lojas, e nem você nem ninguém vai me
impedir!
-Comprou a história dessa desgraçada?
-Não é o que ela disse de você que me
convenceu! É o seu comportamento. Você é capaz de tudo pra que ninguém descubra
que seus planos deram errado. A começar pela ida da Carol pro exterior! Ser ela
não tivesse fugido dela, se tivesse encarado a gravidez do lado da gente, minha
irmã teria sobrevivido. Mas agora ela tá dentro de um túmulo. E a culpa é sua!
-Cala essa boca... – Bernardo levanta a mão
para Yanna.
-Não encoste um dedo nela!- ordena Sílvia.
-Tem razão, Sílvia. Não vale a pena perder
tempo com ela, não vai acreditar em mim mesmo. Só na mãezinha abnegada que tem.
-Pode nos poupar das suas ironias. Eu não me
sinto atingida por nada do que você diga ou pense de mim.
-A descoberta do meu suposto mau-caratismo te
deu um gás e tanto na disputa pelo respeito dos meus filhos, não?
-Respeito? O que eu quero é o coração deles,
que você minou desde que eu fui embora, coordenando os dois pra realizarem os
seus anseios. Você só se sente realizado como pai se os dois te obedecerem.
Fora dessa possibilidade, você é o homem mais frustrado do mundo.
-O que você quer? Que eu confirme todas as
informações desse dossiê? Quer? Yanna, minha querida, se você espera alguma
nota de ressentimento ou um pedido de desculpas, gaste seu tempo em atividade
melhor. Distribua suas milhares de cópias Brasil afora, mas não sem antes jogar
esse dossiê nas mãos da polícia. Mas é bom que eu avise: até lá, o seu destino
quem determina sou eu.
-Por que tanto ódio, Bernardo? Tem horas que
eu penso que nunca mais vou conseguir reconhecer o meu irmão, aquele que batalhava
pra chegar onde queria, sem atropelar a felicidade dos próprios filhos. A
própria Carolina é a maior vítima desses sacrifícios que você faz da felicidade
da sua família.
-Por que tanto amor transbordando de você,
Miguel?
-Porque eu não passo a minha vida esperando o
mesmo dos outros, nem que os outros façam a minha vontade, como se eu fosse o
senhor de tudo!
-Ótimo. Só falta o Raffael aqui pra completar
a crucificação. Eu não vou mais permanecer nesse espetáculo patético contra
mim. Se ele existir... Vão para o inferno!- abre a porta de casa e se retira.
Na sala, ficam Miguel, Sílvia e Yanna, sem
saber o que dizer uns para os outros.
...
Fora do setor infantil da Oncomed, Lucas e
Osmar esperam por notícias de Kim. Alice volta do quarto.
-Como é que tá meu filho, Amanda?
-Lucas, as notícias não são boas.
-Por quê, Doutora? O que meu neto tem?
-Detectei que o Kim apresentou a síndrome da
lise tumoral.
-O que é isso, Amanda?
-É uma série de complicações que surge devido
ao tratamento da quimioterapia. Os sintomas são vários, mas o que Kim teve
foram dois: a paralisia e a contração dos músculos da boca.
-Kim vai ficar assim até o fim do tratamento,
Doutora?
-Acabei de dar um medicamento via oral pra
ele, Seu Osmar. Agora ele está sob controle, mas isso não impede que novas
crises ocorram com ele.
-Então por que você não para com a
quimioterapia, Amanda? Será que você não tá vendo que Kim tá pior desde que
veio se tratar aqui?
-A quimioterapia é o
melhor tratamento pro linfoma, Lucas. Sem ela, os efeitos da doença seriam
piores.
-Só que eu não vejo
nada!
-Doutora, a senhora
vai me desculpar, mas... O meu neto está definhando numa cama.
-Kim não pode
perceber o desespero de vocês, por isso eu peço que tentem manter a calma, pelo
menos na frente dele.
-Como é fácil falar,
não é?
-Lucas, eu não
preciso das suas ironias, eu estou fazendo o meu trabalho da melhor maneira
possível. Mas acontece que cada organismo responde de uma maneira diferente ao
tratamento, e o do Kim tem demonstrado diversas reações adversas. Acontece que
não existe outra opção que traga os mesmos resultados. E se vocês não acreditam
nos avanços que o Kim pode fazer, ninguém vai convencê-lo de que a cura vai
chegar.
-Filho, procura comer
alguma coisa, ir pra casa, tomar um banho. Eu fico com Kim.
-Eu não saio de perto
do meu filho. Nunca saí, quanto mais agora!
-Seu Osmar não tá te
expulsando daqui, Lucas. Ele só tá preocupado com você, assim como seu filho
ficaria se te visse assim.
-Ouve a doutora,
Lucas. Vai descansar um pouco, mais tarde você volta.
-Tá bom, Pai. Vocês
que sabem- sai, decepcionado.
-Doutora, me desculpe
por ele. Mas não está sendo fácil.
-Eu entendo, Seu
Osmar, só queria que ele entendesse que da minha parte nada falta pro Kim se
livrar dessa doença.
-Cá pra nós, Doutora:
acha que ele tem chance?
-O tempo vai se
encarregar de trazer a resposta que vocês tanto esperam. Mas eu tenho medo de
uma possível regressão no quadro do Kim. Se ele fraquejar mais, não vai ser nas
mãos da medicina que o problema vai ser colocado.
-Disso eu sei. Mas eu
tenho fé que a senhora faz o possível. O impossível está nas mãos de Deus.
-Tomara, Seu Osmar.
...
Transtornado depois
da aparição de Sílvia, Bernardo faz um trajeto diferente do habitual sem
perceber. Quando nota, já está perdido.
-Droga. Agora vou
pegar um engarrafamento desgraçado...
Passando pela praia,
encontra a beira da calçada Raffael, sentado no chão e descalço. Rapidamente,
estaciona o seu automóvel e vai até a areia, mas o filho não o percebe. Sobre
os pés do engenheiro, joga um pouco de areia com o seu sapato.
-Que é isso?
-Poderia fazer a
mesma pergunta, Raffael. Desde quando você dorme fora de casa?
-A você eu não devo
explicações- levanta-se, consternado.
-Me deve até as calças
que está usando, moleque! O que é, hein? Já deu o seu show, já deixou seu tio e
sua irmã preocupados com o seu paradeiro, até foram parar na delegacia. Deixa
dessa frescura e entra no carro.
-Com você, eu não vou
a lugar nenhum.
-Que tom de voz é
esse pra falar comigo?
-A lugar nenhum!
Ouviu?
-Olha aqui, para com
esse ataque. Jamais te poupei da verdade do que acho ou deixo de achar de você.
Então, não venha agora se comportar como uma criança!
-Tudo o que você faz
comigo ou pensa de mim eu não sei. Ontem mesmo eu descobri um segredo seu.
-Você abandonou o carro
na Oncomed. Até tenho uma vaga ideia do que pode ter acontecido... Aquele negro
safado falou mal de mim, não foi?
-Lava a boca pra
falar do Lucas! Ele tem mais dignidade do que você. Pelo menos ele não trama
contra o próprio filho. O Kim sabe que pode confiar no pai, ao contrário de
mim.
-Fala o que foi que
aquele calhorda inventou sobre mim, fala!
-Mentiras do Lucas eu
não tenho pra contar. Mas as verdades de Alice Dubeux, a prostituta de luxo que
você contratou... Essas, sim, são um prato cheio.
-Quem é essa tal de
Alice?
-Que foi? Sua memória
é tão seletiva que você não se lembra nem de quem transou contigo?
-Raffael, eu não
admito que você...
-Você não tem que
admitir nada! A única coisa que eu quero de você é distância.
-Sério mesmo que você
perdeu o resto de juízo que tinha por conta de uma rameira?
-Que você colocou na
minha vida.
-Olha à sua volta,
seu imbecil. Há milhares de mulheres no mundo. Você tinha justamente que se
apaixonar por ela, pela Alice? Juro que eu achei que você fosse mais inteligente!
-Você não tinha o
direito de fazer isso comigo! Como é que você conseguiu ser tão canalha?
-Eu disse que
controlava a sua vida, e que era responsável por tudo que você fazia. Até isso,
Raffael. Até uma mulher na sua cama eu fui responsável por colocar.
-Só que na minha vida
você não tinha o direito de se meter.
-Eu sou teu pai,
idiota! Acha mesmo que esse jeito excessivamente estudioso, sem olhar pra um
rabo de saia que seja, não me preocupava? Com menos idade que você, eu já tinha
tido vários namoros, dormido com quem bem entendia. Será que não era mesmo pra
eu ficar preocupado? Foi daí que eu pensei: já que ele não vai pra cama com a
primeira que aparece, que não vá com o primeiro.
-Teu método funciona tão bem que
enterrou uma filha.
-Não fala da Carolina, insolente.
-Por quê? Virou santa? Fugiu de você,
do seu receio, da sua opressão e acabou morta! E quando você teve a
oportunidade de fazer alguma coisa de bom depois da morte dela, recusou o neto
por ele ser filho de um negro. Mas é muito mais fácil botar a culpa no Lucas,
não é? Por que você não diz que cavou a sepultura da tua própria filha, hein?
Por quê? Eu não vou ter o mesmo destino da Carolina.
-Não? Vai fazer o quê, então? Se casar
com aquela vagabunda pra me provocar?
-Fugir do teu domínio, da tua
ditadura, do teu império. A partir de hoje, eu não vivo mais com você. Mas não
precisa se preocupar: eu não vou deixar nada meu lá dentro.
-Pior que vai. Se você insistir nessa
ideia estapafúrdia de abandonar a nossa casa, nem entre.
-Se é assim que você quer...
-Quem deu a carta do jogo foi você.
Agora, você tem total liberdade pra se refestelar na cama da prostituta. Isso
é, quando tiver vaga, porque ela deve atender muito ainda, não é?
-Nossa, que alívio! Antes, eu sentia
nojo dela e de mim. Passou. O meu nojo é por você, só por você. E se você for
homem, como diz que é, nunca mais olha na minha cara- Raffael recolhe os
sapatos e atravessa a rua.
Bernardo chora diante da reação do
filho, mas não se intimida e repete os passos dados pelo engenheiro.
-Olha aqui!- grita enquanto atravessa
a rua, mas Raffael não se vira- Se você acha que vai viver com aquela mulher,
você tá muito engana...
Raffael ouve o impacto de um carro,
que atropela Bernardo.
-Pai!- corre para vê-lo, agonizando em
uma poça de sangue.
...
Ainda na sala de estar da casa de
Bernardo, Yanna analisa o dossiê entregado por Sílvia.
-Quanto mais eu leio, mais eu me
surpreendo com meu pai.
-Yanna, eu sei que tudo é muito
difícil de digerir, mas eu tinha que contar a verdade.
-Eu vou ligar pro Cadu, o meu amigo
que ajudou a produzir o CD, e contar o que aconteceu- Yanna se levanta do sofá.
-Espera, filha. Eu quero falar com
você ainda.
-O que foi, Sílvia?
-Sei quer tudo ainda é muito recente,
que talvez não seja a melhor hora pra falarmos a respeito disso, mas... Mais
uma vez, eu quero te pedir perdão. Quero que você me perdoe pelos anos que me
ausentei, pela responsabilidade que não quis ter com nenhum dos meus três
filhos, mas... A vida cobrou muito caro de mim e do seu pai.
-Sílvia, não é de uma hora pra outra
que o meu perdão vem. Já faz cinco anos que você vem tentando, eu tenho que
reconhecer. Mas por mais que eu ore, eu não consigo te dizer que eu te
desculpo... Embora eu, dentro de mim, já tenha te perdoado milhões de vezes.
-Nunca vou conseguir apagar o meu
passado. Mas eu preciso construir o meu futuro, e não conheço ninguém melhor do
que vocês. Claro, eu não posso ser hipócrita de negar que o Bernardo soube colocar
nossos filhos do caminho do bem.
-Só que, pelo visto, nossas vidas são
assim por uma questão de livre-arbítrio. Todos os dias, eu tento reconhecer
aquele homem que nos abraçava na infância pra gente não chorar. Hoje, o que eu
vejo é um adulto duro, intransigente... Não existe mais possibilidade de diálogo
com ele.
-O que está pensando em fazer, minha
filha?
-Por enquanto, eu só quero resolver o
problema da distribuição dos CDs. Depois disso, eu não fico mais aqui, por mais
que ele exija ou peça.
-Desculpem interromper a conversa de vocês.
-Fala, Tio. Tem novidades do Raffael?
-Sim, ele está no hospital.
-Meu filho? O que foi que houve com
Raffael?
-Com ele não aconteceu nada, Sílvia.
Ele está acompanhando o Bernardo.
-Mas o que meu pai tem?
-Yanna, você vai ter que ser forte.
...
Osmar dorme no quarto em que está Kim,
também adormecido. Lucas volta para o hospital cabisbaixo, e sem fazer barulho.
Primeiramente, olha para o pai. No entanto, ouve um ruído contínuo: o monitor
cardíaco mostra que não há mais batimentos em seu filho.
-Kim? Não pode ser... Não, não pode
ser!
...
Bernardo segue caminhando pela calçada
e vê que nasce rapidamente um gramado no asfalto da rua em que está. Logo, os
carros que estão estacionados dão lugar às mais belas flores que existem, e as
vidraças dos prédios refletem o azul do céu, cada vez mais forte.
Uma criança anda calmamente na mesma
calçada, atrás do dono da transportadora. Repentinamente, segura a mão de
Bernardo.
-Quem é você?
-Kim. E você?
Nenhum comentário:
Postar um comentário