20/10/2016

ONZE MIL/ CAPÍTULO 4



-Acabei de procurá-la pela escola toda. Ela faltou as duas primeiras aulas e achei que estivesse no quarto. Mas não está em canto nenhum.
-Tem certeza?
-Absoluta.
-Vou chamar o segurança agora mesmo. Não é possível que ela tenha passado e ninguém se deu conta.
-Se o pai dela ligar perguntando, o que eu digo?
-Acabei de falar com o Dr. Mutarelli. Ele não pode nem desconfiar disso.
-Não seria o caso de chamar a polícia?
-Nem pensar. Vamos ver se conseguimos encontrar Carolina nos arredores. Depois, veremos o que fazer.

...

Carolina, em gestação avançada, está na fila de embarque de um aeroporto londrino, sem bagagem (o que chama a atenção dos outros tripulantes), com o passaporte na mão, muito apreensiva. Seu propósito é o de retornar ao Brasil.

...

Bernardo, após o meio-dia, interrompe suas atividades no escritório para almoçar em casa com os filhos. Entretanto, quando está perto de sua residência, tem uma sensação estranha e põe uma das mãos no peito esquerdo. Por alguns segundos, o seu carro fica parado no acostamento. Acreditando ter se recuperado do mal súbito, o patriarca dos Mutarelli volta a dirigir. Chegando à residência, guarda o veículo na garagem e entra pra lavar as mãos. Raffael e Yanna estão à sua espera.
-Como é bom ter meus filhos em casa, almoçando comigo, sem atrasos ou compromissos...
-Quase todos, né, Pai?- a indagação de Yanna faz Bernardo se calar por um instante- Falando nisso, alguém aí teve notícias de Carol? Porque ela não liga, não manda mensagem, e-mail, nada! Comunicação pra quê, não é mesmo?
-Sua irmã está bem. Maravilhosamente bem. Quanto a isso, vocês não precisam ficar preocupados.
-Isso é o que ela te diz ou o que o senhor quer pensar?
-Yanna, se ela tivesse com algum problema, é lógico que ia falar com a gente.
-Fael, por favor, menos, tá?
-Menos por quê? Quem está se excedendo aqui é você, Yanna, com esses comentários impertinentes. Hoje mesmo liguei pra escola e a diretora elogiou o comportamento de Carolina.
-Mas falou com ela pelo menos?
-Não, mas eu sei que ela está bem. Lá, não está faltando nada.
-Só o pai do filho dela.
Raffael percebe que o almoço está prestes a ser encerrado.
-Carolina está melhor do que se estivesse aqui.
-Disso eu sei. Um namorado negro é mais perigoso que uma doença fatal. Só não é pior que o seu racismo velado.
-Vocês vão me dar licença, mas... Esse almoço está intragável- Bernardo usa o guardanapo e o joga sobre a mesa depois- Com licença- levanta-se da cadeira e volta ao trabalho.
-Bem que você podia aliviar, né? Pra ele, essa situação toda é barra pesada. Ainda não consegue nem falar dessa gravidez, mesmo com ela longe.
-Quando ela chegar aqui com um bebê nos braços, ele vai ter que parar de fingir que o assunto não é com ele.

...

O desembarque de Carolina é marcado por muita tensão. No saguão do aeroporto recifense, a jovem abre a carteira e procura sair rapidamente do local para não ser reconhecida. Em seguida, toma um táxi, acenando insistentemente.
-Bom dia.
-Bom dia- responde, de maneira seca- Me leva pro bairro de Casa Amarela, por favor.

...

Na empresa de transportes que comanda, Bernardo conversa com seu irmão sobre a situação de Carolina.
-O que você pensa em fazer agora?
-Já fiz, Miguel. Eu tomei as rédeas da vida da minha filha, já que ela sozinha demonstrou não ter maturidade pra tal.
-Você isolou a Carolina do convívio com seus filhos. Colocou a menina pra estudar num colégio interno como se ela fosse uma criança que não soubesse se defender.
-Até sabe. Só não pode distinguir o que é bom e o que é prejudicial pra vida dela.
-Essa sua rusga com o tal de Lucas não tem o menor sentido. Soa racista, inclusive.
-Se esse é o nome que você dá à proteção que eu preciso dispensar à Carolina...
-Ainda acho que a mãe dela deveria ter sido informada do que houve...
-Carolina tem pai. Essa figura materna foi preenchida por mim. Foi assim que Sílvia decidiu.
-Talvez agora ela tenha maturado sobre o que fez. Pra mim, esse afastamento dos filhos não é uma punição contra você, e sim pra ela mesma.
-Olha, Miguel, eu não passo a mão nem na cabeça dos meus filhos, não vou compactuar com o desprezo da minha ex-mulher.
-Percebeu que o fato de estimular seus filhos a esse mesmo comportamento é uma vingança pessoal?
-Talvez. Não muda o fato de que ela não os merece.
-Tudo bem, Bernardo. Só que a sua filha está grávida e, uma hora ou outra, ela vai ter que voltar ao Brasil. Você a deixou sob a custódia de um colégio interno. O que vai acontecer quando essa criança nascer?
-Miguel, não me olhe como se eu fosse um carrasco sem escrúpulos. Vou amar essa criança, como meu neto que é.
-E quanto ao pai? O que você vai dizer sobre ele?
-Por mim, ele nunca vai saber.
-A Carolina pode contar.
-Que conte. Eu duvido muito, já que se despediram brigados.
-Uma hipótese a ser considerada.
-Se a minha filha reatar com aquele rapaz, ela pode esquecer que eu existo. Ela e o filho. Eles morrem pra mim.

...

À espreita numa lanchonete que fica em frente à casa de Lucas, Carolina espera seu ex-namorado chegar da escola. A moça não percebe, mas Osmar, o pai do garoto, está no recinto bebendo uma dose de refrigerante. Chega ele a perguntar ao dono do estabelecimento.
-Quem é essa moça?
-Não sei, nunca vi nesse pedaço.
-Dá pra ver que é gente fina.
-É nada, Osmar. O que tanto ela olha pra tua casa?
-Sei, não. Mas tô até com vontade de perguntar.
Um ônibus traz Lucas à rua da sua residência, e o jovem desce na calçada onde a lanchonete está localizada. No entanto, ele fica a alguns passos de Carolina, não podendo vê-la. Consequentemente, também não vê Osmar, que percebe a chegada do filho e, ainda assim, continua bebendo. A filha de Bernardo nota um carro desgovernado na direção do estudante, que atravessa a rua mexendo um celular. Impetuosa, acaba correndo, o que atrai a atenção do comerciante.
Através do empurrão de Carolina, Lucas é jogado para a calçada de sua casa e o carro acaba batendo num poste. O barulho acaba fazendo Osmar levantar para conferir o que aconteceu. Atordoado, Lucas só tem uma imagem horrível em sua frente: a ex-namorada grávida, desmaiada no meio da rua por conta do impacto.

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