18/10/2016

ONZE MIL/ CAPÍTULO 2


-Não vai me convidar pra entrar?
-Vou, sim. Por favor- Lucas abre a porta. Bernardo procura disfarçar o descontentamento em estar nesta residência- Quem deu o meu endereço pro senhor?
-Procurei saber. Afinal, você não disse nem onde mora pra minha filha- senta-se no sofá- O que foi? Teve vergonha?
-Isso não é lugar pra Carol.
-Concordo com você. Mas acho que deveria ter feito um convite pra ela vir aqui. Certamente, ela não se importaria com sua situação econômica.
-Carol não é disso, não, senhor.
-Ao contrário de mim, o pai dela. Ninguém, mais do que eu, a conhece. Sei bem o espírito desprendido que ela tem, de não se ater ao que as pessoas têm, da importância de saber o que elas são. Logicamente, isso foi um dos fatores que fez com que você se aproximasse de Carolina.
-É, é bem por aí mesmo. Mas o senhor veio aqui por quê? Pra saber quais são as minhas intenções?
-Não vim pra dar viagem perdida, ou ouvir de você o que está estampado na sua cara. Até agora, eu pensei que você fosse um passatempo na vida dela. Só não esperava que fosse demorar tantos meses.
-O senhor não quer ir direto ao assunto?
-Objetivo você. Gosto disso. Vou contar o que se passa na minha mente. Eu decidi que vou mandar Carolina pra uma universidade no exterior. Você sabe que ela tem condições de se manter.
-Duvido muito que ela queira ir. Carol vai fazer o Enem no fim do ano- Lucas também senta.
-Vai fazer o que eu determinar. Assim como você.
-Como assim?
-Quanto você estaria disposto a receber pra esquecer que Carolina existe?
-Pelo que eu tô vendo, o senhor deu mesmo uma viagem perdida. O senhor descobriu o meu endereço, mas não quem eu sou de verdade.
-Um alpinista social? Um aproveitador? É isso que você que eu diga com todas as letras?
-Eu não tô com a sua filha por interesse, não quero saber se ela tem dinheiro, motorista particular, se pode pagar aquela mensalidade cara do colégio...
-No qual você é bolsista, Lucas. Bolsista. Só o salário de mecânico do seu pai não daria cinquenta por cento do que a escola cobra.
-Mas eu consegui entrar lá. Fiz os dois testes, me saí melhor do que os outros.
-Só não é melhor do que os outros.
-Os outros são quem? Sua filha?
-Principalmente ela!
-Não é o que ela pensa. E eu, sinceramente, me preocupo mais com o que ela pensa do que o que o senhor acha de mim.
-Qualquer figura que saiba falar doce com ela pode ludibriá-la. Não sou cego, Lucas. Sei que minha filha é uma pessoa maravilhosa.
-Se sabe, não devia ter vindo aqui. Pode ficar com seu dinheiro. Pra mim, não serve de nada.
-Ainda não desisti de pôr a mão na sua consciência.
-Me comprando?
-Não. Mostrando que o principal impedimento pra felicidade dos dois é você mesmo.
-Não adianta me jogar pra baixo porque eu sei que sou pouca coisa pra Carolina.
-O bom senso te diz isso... – Bernardo ri- Como eu fui idiota de pensar que você abriria o jogo tão fácil... Claro que a questão não é o quanto você lucrar com ela, e sim o que pode conseguir.
-E o que o senhor acha que eu quero?
-Vencer o seu complexo de inferioridade. Encontrar alguém que realmente sinta amor por você.
-O senhor não sabe o que tá falando.
-Será que não sei? Com quantas meninas brancas você já dormiu? Alguma te quis, por acaso?
-Já chega, tá bom? Tá na hora do senhor dá o fora daqui! Sai!
-Filho, você viu onde eu deixei... – Osmar, o pai de Lucas, chega da oficina na qual trabalha e fica surpreso com a presença de Bernardo- Algum problema?
-Não, nenhum. Eu já estava de saída, porque já dei meu recado- Bernardo se aproxima de Osmar- Presumo que o senhor seja o pai dele, não é? Pois então trate de colocar um pouco de juízo na cabeça do seu filho, caso eu não tenha conseguido- abre a porta e sai.
-Quem era esse homem?
-Pai de Carol.
-O que é que ele queria?
-Que eu ficasse longe da filha dele.
-E você vai obedecer?
-De jeito nenhum!
-Por que não? Por acaso ele não está certo em querer você longe da filha dele? Porque qualquer um que te conheça, sabe que você não gosta dessa moça.
-Ela gosta. É o que me interessa.
-Mas não vê o que você quer!
-O senhor tá dando razão pro pai dela? Sabia que ele veio me comprar?
-Lucas, de que você não ia se vender, eu não tive dúvida. Mas você usa essa tal de Carolina. Porque ela não tem preconceito, ao contrário de você.
-Para de dizer besteira...
-Quantas moças, assim como você, não te davam chance? E você não queria saber, porque se fosse pra ter alguma coisa séria, ia ser com uma branca. Agora, você encontra uma e usa como se fosse um prêmio, um troféu?
-"Como eu" como? Dá pra explicar?
-Negras! O que foi? Pensou que eu não ia falar? Mas vou, sim. Você e eu: negros, pretos, como quiser chamar. Nada de morenos ou pardos. Negros mesmo!
-Você tá errado a meu respeito!
-Não. Eu sou seu pai, eu fui sua mãe desde que ela morreu, eu te conheço mais do que ninguém. Eu sei o que eu te ensinei pra você ser gente. Nunca te disse pra tratar os outros como se eles fossem objeto. Se o pai dessa menina não quer que você faça ela de idiota, eu menos ainda. Dê um jeito nessa situação.

...

Ao fim da aula, Lucas sai apressadamente e não chega a conversar com Carolina. Ela, por sua vez, corre atrás do namorado.
-Não vai falar comigo, não? O que tá rolando com você?
-Nada!
-E tá assim, desse jeito comigo?
-Eu... Eu queria falar com você, mas não tava com coragem.
-O que foi, Lucas?
-Tinha uma coisa pra te dizer. Eu não quero continuar com isso.
-Isso o quê?
-O namoro da gente.
-Assim, sem mais nem menos?
-Não. Eu queria ter falado isso há mais tempo, só que...
-Você tá com outra menina?
-Não. O problema sou eu. Sempre vai ser eu.
-Se você quisesse mesmo conversar, tinha falado na viagem. A gente passou quatro dias juntos e você não abriu a boca pra me dizer nada disso.
-Fala sério, Carol...
-Não me chama de Carol!
-O que você viu em mim? Uma chance de afrontar teu pai, tua família? Se amostrar com um namorado preto e pobre?
-Lucas, eu nunca liguei pra isso, você sabe mais do que ninguém...
-Pois é, mas eu ligo. Toda a vida eu liguei. E a verdade é que eu gosto de você.
-Dá pra ver o quanto, né?
-Só que eu não vou continuar te usando. É isso que eu tô fazendo o tempo todo: mostrando pra todo mundo que uma menina igual a você namora comigo. Rica, do cabelo bom, da pele branca...
-Não acredito que você tá me dizendo isso... Lucas, você tá mentindo pra mim...
-Tava mentindo antes! Antes, eu tava te fazendo de idiota! Antes, eu dizia que você tinha tudo que eu procurava numa menina, mas a verdade é que eu não queria saber de você. Pra mim, você era um troféu, pra mostrar pra todo mundo que alguém via valor em mim. Do quê que ia adiantar namorar uma negra? Pra quê? Pra todo mundo dizer que só ela ia me querer? O que eu queria, eu já provei, Carolina: mostrar que alguém um dia gostou de mim, sem se importar com a minha cor.
-Por que você tá me dizendo isso agora?
-Porque eu não quero mais enganar você. Eu não quero que você chore por minha causa, que desafie os outros, que bata de frente. Você não merece nada disso. Carolina, eu não mereço você. Nunca mereci.
-Tõ vendo mesmo que não. Obrigada por não querer me fazer mais de idiota.
-Juro pra você que eu não queria que as coisas terminassem assim...
-Ah, o que você ia fazer? Me enrolar e continuar mentindo? Sabe de uma coisa? Faz de conta que eu não existo, tá? Não olha pra mim, não fala mais comigo.
-Vai ser fácil ignorar que eu ainda tô na escola. Meio mundo aqui dentro faz isso.
-Eu não sou todo mundo. Eu gostava de você. Cara, se fosse meu pai, com o preconceito dele... Mas você?  Fica tranquilo. Eu vou me afastar de você. Mas não porque você quer, é pra não ter que ficar perto de você. Agora, sou eu que faço questão. Dá licença- Carolina passa rapidamente pelo rapaz, deixando-o atordoado.

...

À noite, o jantar não poderia ser mais silencioso. Só estão presentes Bernardo e as filhas. Yanna logo pergunta:
-Cadê o Fael? Tá no quarto estudando?
-Deixou um recado dizendo que foi estudar com uma amiga.
-Lá dentro?
-Não. Na casa dela.
-Uau, isso é um avanço?
-A que se refere?
-Com suas filhas mulheres, esse tratamento não é tão liberal assim.
-Lógico que é diferente, seu irmão é homem.
-Que pensamento antigo, Pai.
-Não importa. Funciona. As coisas à maneira como devem funcionar.
-Vou fingir que nem ouvi um absurdo desses... – Yanna repara no olhar reflexivo da irmã- Tá tudo bem, Carol?
-Pai, me diz uma coisa: lembra daquele exame que eu fiz pra entrar naquela escola em Londres?
-Exame esse que você passou, mas desistiu de embarcar por causa do namoradinho.
-Quanto tempo a escola deu pra eu pensar melhor, caso mudasse de ideia?
-Uns seis meses... Mas ainda estamos no começo do ano, e você fez o teste quando viajamos nas férias. Por que está perguntando isso?
-Tô pensando em me mudar pra lá... Pra estudar.
-Carolina, não faz isso...
-Por que não, Yanna? É uma oportunidade excelente pra sua irmã.
-Ela não sabe o que tá dizendo, Pai.
-Sei, sim. Na hora, eu achei que não fosse boa ideia, mas eu pensei melhor.
-Você tá fugindo do problema. Não é assim que se resolvem as coisas.
-De que problema vocês duas estão falando?- Bernardo se faz de desentendido, deixando as moças tensas.

...

O apartamento no qual estão Raffael e Alice tem uma varanda de frente à praia. Sentem a brisa, estudando um ao lado do outro. Aos poucos, ela inventa uma tática para atrair a atenção do rapaz.
-Então, eu posso considerar esse daqui como um hidrocarboneto?- aponta para o caderno.
-Pelas ligações, sim.
-Você é bom nisso, muito bom.
-Nem tanto. Se fosse assim, eu tinha passado de primeira no vestibular.
-Mas você não disse que tua opção de curso era Engenharia?
-Só que agora eu tô estudando bem mais do que no ano passado. O dinheiro do cursinho não é à toa.
-Você não tá fazendo vestibular por livre e espontânea pressão, não, né?
-Sempre quis fazer Engenharia mesmo. Meu pai disse que não tinha nada a ver comigo, que eu devia trabalhar com ele, que mesmo sem faculdade conseguiu se erguer. Mas eu bati o pé. Agora tenho que passar de todo jeito, já que na outra vez eu não fui aprovado.
-Na boa, você tá mais que certo. E na tua idade, o que mais tem é menino que quer fazer um curso, depois escolhe o que a família quer...
-E se arrepende depois!
-Pois é.
-Você pensa parecido comigo- a fala de Raffael deixa Alice com um olhar constrangido, mas ele resolve continuar estudando- Agora vê só: esse daqui pode ser considerado hidrocarboneto também?- o jovem repara na maneira como ela o observa- O que foi, Amanda?
-Sabe que eu não sei?- ri- Só fiquei assim, te olhando... Não consegui pensar em mais nada- aproxima-se de Raffael- A minha dúvida agora é se eu tô sentindo isso sozinha ou se você tá sentindo a mesma coisa.
-Amanda, eu vou te falar que...
-Diz.
-Se eu tiver sentindo a mesma coisa... O que é que a gente faz com isso?
-Pode deixar. Nesse caso, eu sei qual é a resposta- Alice o incita a trocar um lento beijo.

...

A conversa que Carolina e Bernardo tiveram na hora do jantar deixou Yanna bastante intrigada. Direto ao assunto, ela confronta a irmã no jardim da casa.
-Qual é a sua, hein? O que é que você quer com esse circo todo?
-Yanna, eu não tô querendo chamar a atenção de ninguém, não.
-Mas consegue! Eu só não sei se é do Pai ou se é do seu namorado.
-Eu quero que Lucas se dane; isso, sim!
-O que foi? Ele não quer esse filho? Te mandou tirar? Fala pra mim, o que foi que ele fez?
-Ele terminou comigo. Disse que me usou, que me fez de idiota esse tempo todo, que só ficava pra se mostrar pros outros... O cretino disse na minha cara!
-Não acredito nisso.
-Pois pode acreditar, Yanna. Lucas não é esse santinho que você pensa.
-Não tô falando dele, e sim de você! Você tem noção do que fez? Falou daquele teste que você tinha feito pra estudar no exterior, bem antes de conhecer Lucas. Tá querendo tirar o corpo fora nessa história!
-E daí? Por acaso, eu sou obrigada a olhar pra cara dele no colégio? Correr o risco de trombar com ele no meio da rua?
-Acontece que você tá grávida!
-Supostamente.
-Supostamente uma ova! Você tá grávida e ponto final! E eu não vou deixar você entrar num avião, esperando um bebê, só por causa de um cara!
-Mas ela vai!- Bernardo ouve a discussão e interrompe as filhas- Se for por falta de apoio, Carolina receberá todo o meu auxílio. Já decidi que ela vai estudar fora, e assim que terminar a escola, fará uma faculdade na Inglaterra.
-O senhor não tá falando sério.
-Demais até, Yanna. E eu vou adverti-la de uma coisa: você está terminantemente proibida de contar sobre a gravidez da sua irmã, pra quem quer que seja!

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