-Que tipo de
brincadeira é essa que vocês estão tentando fazer comigo? Eu quero ver o meu
rosto agora!
-Ainda não é
a hora, Otaviano...
-Eu determino
a hora. O rosto é meu. Quem me trouxe pra esse hospital?
-Seu
motorista e sua governanta. Foi o que disseram na recepção.
-Aqueles
malditos traidores! Eles vão pagar muito caro por ter ajudado a Ana Maria.
Fala, doutor! Que estória é essa de não poder me operar?
-Ainda é
recente o corte que você levou, Otaviano. Se nós fizermos uma cirurgia no seu
rosto, você corre um risco muito grande. A remoção da cicatriz pode não ser bem
sucedida, você pode até morrer na mesa de operação. É preciso esperar um tempo até
que...
-Quanto
tempo? Quanto tempo eu vou ter que esperar até tirar essa marca da minha cara?
-Pelo que eu
posso analisar do caso... Acho que em um ano, o senhor pode...
-Um ano? Com
o rosto deformado durante um ano? É pra isso que eu gasto uma fortuna neste
plano de saúde? Pra ele se recusar a me atender quando eu preciso dos serviços
dele? Eu exijo ser operado o quanto antes, não posso esperar nem mais um
minuto...
-Mantenha a
compostura, Otaviano! Você está muito exaltado!
-Você não me
viu ainda nervoso, seu filho da... – joga um soro no médico- Eu quero que você
assine a minha alta agora, se não for fazer a minha cirurgia! Eu não fico nem
mais meio segundo aqui!
-Eu não posso
fazer isso!
-Pode, sim! Eu
vou a outro médico, viajar, escutar outras opiniões... Mas com essa cara, eu
não fico. Eu paguei pra ter esse serviço, e agora mesmo eu vou me desfazer
dele, custe isso o que tiver que me custar!
-Não vai! Você
não está em condições de ir pra casa, tampouco de ser transferido pra outro
hospital. Qualquer um para quem você perguntar vai te dar a mesma resposta. Não
sou nenhum inconsequente que se recusou a consertar seu rosto por mero
capricho. Se o senhor exige medidas imediatas, eu exijo respeito.
-Como você
ousa falar comigo dessa forma? Você sabe que eu se eu falar com o diretor desse
hospital, ele pode te tirar daqui em três tempos? Eu sou pagante daqui, não sou
qualquer um que você receita um remédio e manda pra casa, não. Você só come
porque eu me permito que você coma, seu...
-Faça! Faça
isso mesmo. E se ele me demitir, ele não vai operá-lo no tempo que o senhor determina.
Ou o senhor espera ou vai morrer. Essa decisão não é mais minha, Otaviano. É
sua. E antes que você volte a mencionar que é um homem importante, saiba que eu
sou um dos mais renomados cirurgiões plásticos do Brasil. Portanto, eu não vou
nem pretendo macular a minha carreira por sua culpa!
-Saia desse
quarto agora! Você e ela! Fora!
-Venha, não
vale a pena discutir com ele. Não agora- diz à enfermeira, abrindo a porta.
Otaviano põe
a mão na cabeça e chora, mas dá vários socos na cama com o braço direito.
-Você me
paga, Ana Maria. Tudo por culpa daquele bastardo! Mas eu acabo com ele, nem que
eu tenha que matar aquele desgraçado! Esse maldito garoto está fazendo tudo o
que eu construí ruir. Eu não vou dar o divórcio nunca. Vou fazer da vida de Ana
Maria um inferno. E a dele também, antes de eliminá-lo da minha vida de uma
vez. Eu juro!
UMA SEMANA
DEPOIS...
Na ONG,
Frederico acompanha mais um culto realizado pelos jovens que estão em
tratamento contra a dependência química. Ao término, um deles vai
cumprimentá-lo.
-Eu quero
dizer “muito obrigado” ao senhor.
-Por que
isso, meu filho?
-Porque o
senhor sempre fez muito pela gente. Ninguém da minha família tinha dinheiro pra
me ajudar, o senhor me encontrou na rua e me acolheu. Hoje, eu me transformei
num novo cara. E nem falo isso por causa das drogas. Digo porque eu encontrei
um sentido que... Só me livrando das drogas eu não ia conseguir achar. Eu
conheci esses meninos com uma estória parecida, às vezes até pior do que a
minha. Eu via eles se recuperando, e quis isso pra mim.
-Só queria
ter a chance de salvar todos aqui. Infelizmente, foi uma batalha que eu perdi
algumas vezes. Mas eu não vou desistir de vocês.
-E sua fé vai
ser recompensada. Aquilo que você tanto quer vai se realizar.
-Não sei. O
meu desejo é algo difícil de realizar.
-O difícil só
existe pra gente, Frederico. A hora em que o milagre acontece não é a gente que
decide, que determina. Pode ser depois, pode ser agora.
-Fred... –
Lana aparece no local- Você tem algum remédio pra enjoo na sua sala?
-Na segunda
gaveta, meu amor. Mas está tudo bem?
-Está. Só que
venho me sentindo assim há alguns dias. Tenho certeza de que vai passar. Bom,
eu vou deixar vocês à vontade. Com licença- dirige-se ao interno.
-Claro, dona
Lana.
-Ela vem
sentindo esses enjoos ultimamente. Mas Lana não quer nem saber de ir ao médico.
Minha preocupação só aumenta.
-Quem sabe
essa não é a bênção que você tanto está esperando?
-Não... Não, ela
não pode estar grávida. Lana teria me dito se fosse verdade.
-Vai ver ela
ainda não sabe, ou está tentando fazer uma surpresa. Creia que se tiver que
ser, o seu filho vai chegar.
Lana toma o
remédio, e põe o copo sobre a mesa do marido.
-Ele vai
descobrir que eu estou grávida, e eu não vou poder abortar porque ele já
percebeu. Mas o Fred não vai saber quem é o pai dessa criança. Ninguém vai
saber, nem mesmo o verdadeiro pai.
XXXXX
Otaviano se levanta
da cama e se aproxima do espelho. Ele quer ver como ficou o seu rosto após a briga.
Alguém bate na porta.
-Posso
entrar?- pergunta um homem.
-Entra-
permite Otaviano, de costas e recolocando o esparadrapo tirado.
-Se o senhor
quiser, eu posso voltar em outra hora.
-Quem é você?
-Eu faço um
trabalho voluntário aqui na área de oncologia do hospital.
-Pelo visto,
o senhor é pastor.
-Exatamente.
Meu trabalho é fazer com que as pessoas façam a própria fé renascer.
-Acho justo,
mas creio que só funciona pra quem vai morrer. Assim, vai-se embora sem dor,
sem culpa, sem fantasmas do passado assombrando.
-Como vem
acontecendo com você?
-Comigo?
-Muitos dos
funcionários falam sobre você. Vivia aparecendo em capas de jornal,
apresentando uma vida perfeita. E de fato, sua vida poderia ser mesmo assim.
Mas só uma única coisa faltou. Ou melhor, uma pessoa.
-Sei aonde
você quer chegar. Mas eu só cheguei até aqui por meu único mérito. E só de
lutar sozinho para alcançar meus objetivos me dá a certeza de que eu não
preciso de orientação pra decidir o que fazer.
-As certezas
não são permanentes, meu irmão. São poucas as certezas que temos ao longo da
vida. Uma delas é de um amor, jamais demonstrado por qualquer ser humano, que se
refere a nós.
-A outra
certeza é a morte, “irmão”. E se eu escapei dela, é por eu devo acreditar que
existe um plano melhor pra minha vida. Não é isso que vocês insistem em pregar?
-Exatamente.
Um plano completamente arquitetado por...
-Mim mesmo,
bem como todos os outros até agora. Se a sua intenção é me fazer pedir ajuda a
Deus, saiba que eu sou autossuficiente. Não perca seu tempo.
-Não é perda
de tempo tentar fazer alguém se aproximar do Pai.
-Por favor,
não me faça rir. Eu sou um dos homens mais poderosos do país. Apesar disso, eu
perdi uma mulher que dizia me amar acima de tudo, um filho que é bonito,
saudável, mas que não me respeita e fugiu de casa em estado de choque porque me
viu quase ser assassinado pela minha mulher. E não soube disso por qualquer
pessoa: a polícia veio falar quando pegou meu depoimento. Então, não me venha
falar de entregar minha vida ao seu deus porque eu sei que vou dar a volta por
cima. Como sempre dei sem precisar sequer mencionar o Seu nome.
-Eu não posso
interferir em seu destino, irmão, mas creio que ninguém, além, D’Ele, possa.
Por isso, eu vou deixar com você- entrega-lhe um cartão- Esse é o endereço da
minha igreja. Todo dia temos um encontro maravilhoso, eu espero que você possa
conhecê-la um dia.
-O que é? Vai
me tirar a roupa do corpo? Essa que eu estou usando enquanto internado? Quem
não sabe que vocês, evangélicos, não passam de exploradores da fé alheia? Porque
não basta tirar dinheiro de quem já é fiel, ainda tem que convencer o resto da
humanidade de uma crença ridícula.
-Muitos
também têm essa opinião. Mas mudam. Pelo menos, alguns mudam. Nada é tão
definitivo assim, as certezas vão mudando. Eu não quero seu dinheiro, não seja
intolerante. Aliás, você deve ser mais um dos que julgam os crentes como intolerantes,
quando só não entende que nossas percepções são diferentes, e não
preconceituosas. Faça o seguinte: apareça por lá. Só indo lá, não vai mudar a
sua vida. Quem muda é para quem estamos adorando. Talvez seja hora de perder
algumas coisas para conseguir algo melhor. Eu não vou mais tomar seu tempo. Com
licença...
-Tempo. Vou
precisar dele quando sair daqui, e não de igreja. Só o que me faltava: um
protestante me aconselhando...
XXXXX
Ana Maria
está na sala de jantar, com um telefone ao ouvido. Igor chega com Betina.
-Tudo bem. Eu
agradeço por ter ligado. Obrigada.
-Quem era,
tia Ana?- pergunta Betina.
-Era da
polícia. Ainda estão procurando o meu filho, mas ninguém viu. Faz uma semana
que ele não dorme aqui. Ele deve estar com medo de mim depois do que eu fiz.
Assim como você, não é, Igor?
-Eu não tenho
medo da senhora. A gente viu que quem começou foi o seu Otaviano. A polícia
pediu pra que eu falasse a verdade, e eu falei.
-Obrigada,
meu querido. Você tem sido um respiro em meio a esse turbilhão que vem na minha
vida. Eu não sei o que seria de mim sem o seu apoio e o da Sônia.
-Vamos fazer
uma coisa? Vamos pra um lugar bacana, longe de casa?
-Ah, não,
querido. Pode ser que a polícia ligue dando notícias do paradeiro do Yuri e eu
quero...
-Eu quero te
levar pra um lugar onde você pode conversar com alguém que pode resolver sua
situação. Eu sei que você vai encontrar o Yuri, e a sua família ainda vai ter
muitas alegrias com ele.
-Quem pode me
dar alguma informação, Igor?
-Não é
informação. É orientação. Vem, Betina. Pega no braço dela. E aí? Já é?
-Tudo bem, eu
vou. Vê lá o que você vai aprontar.
-Então,
vamos- abre a porta para as duas passarem. Sônia observa tudo, escondida.
-Que o Yuri seja,
um dia, essa bênção que Igor é pra Ana Maria.
XXXXX
Na clínica Luciano
Fraga, está Yuri na calçada, sentado, maltrapilho, com os olhos muitos amarelados
e com resquícios de substâncias químicas em seu rosto. Ele abaixa o rosto e
consome um cigarro novo.
Visivelmente
tensa, Lana sai do prédio acompanhada de Frederico.
-Você não
podia me dar um presente melhor, Lana. Te amo. E agora, eu te amo cada vez
mais. Por que você não me disse que estava grávida?
-Fred, ainda
estou no começo da gestação. Eu não sabia ainda que estava...
-Como é? Ela
ficou grávida?- Yuri surpreende o casal.
-Yuri?-
Frederico fica atônito por ter encontrado o garoto- É você? Sua mãe está louca,
botando a polícia atrás de você. Ainda bem que eu te achei. Você vem pra casa comigo!
Agora!
-Não, eu não
vou pra canto nenhum. Não vou com ela!
-É a Lana,
Yuri. Você conheceu... – percebe parte do que está errado- Você está usando
droga? Me responde, Yuri!
-Fred...
Deixa ele. Ele não quer falar...
-Não, Lana.
Eu quero que ele fale o que está acontecendo! Você está se drogando, Yuri?
O adolescente
não tira os olhos do ventre de Lana, e isso causa incômodo em Frederico,
principalmente pelo fato de Yuri pôr as mãos na sua barriga.
-Esse filho é
meu, cara...
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